O dinheiro fica nos andares de cima da
pirâmide social e quase não chega à base, afirmam especialistas ouvidos
pelo Correio. Eles indicam a expansão do programa Bolsa Família como o
melhor caminho para enfrentar o problema; apontam o poder público como
promotor da desigualdade, ao alocar recursos de maneira desigual; e veem
espaço fiscal para mudar a realidade por meio do remanejamento de
gastos e tributos.
"O Brasil transfere renda incrivelmente mal. O
grosso está indo para a metade de cima, especialmente para os 10% do
topo. Do total de transferências, o Bolsa Família representa apenas
0,44% do PIB e o BPC (Benefício de Prestação Continuada), menos de 1%.
Depois vem todo o resto, mas esses dois são as transferências que chegam
aos mais pobres", explica Sergei Soares, pesquisador do Ipea.
De acordo com estudo coordenado por Soares, em 2016 e 2017 a proteção social foi fundamental para evitar que os efeitos negativos da crise econômica aumentassem a desigualdade. A participação do salário na renda total da população caiu de 75,3% em 2016 para 74,5% em 2017. No entanto, os rendimentos oriundos de programas de proteção social previdência, Bolsa Família, BPC e outras fontes, cresceram de 21,1% para 21,8% no período. O coeficiente de Gini apresentou uma queda marginal de 0,18 ponto entre 2016 e 2017: 0,541 para 0,539.
Soares explica que a leve oscilação ocorreu
devido às mudanças na composição da renda total, que substituíram, em
termos de participação, a do trabalho por outras. "O sistema de proteção
foi fundamental para que não aumentasse ainda mais a profunda
desigualdade, disse. Em outro estudo, ele propõe a fusão dos orçamentos
do Bolsa Família, do Abono Salarial, do Salário-Família e da dedução por
dependente para crianças no Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF),
que somam R$ 52 bilhões, recursos suficientes, para Soares, para formar
um único programa mais concentrado com potencial de gerar maior impacto.
Sem a pulverização dos programas, ele acredita que os benefícios
cheguem a quem realmente precisa por meio de uma eficiente utilização do
Cadastro Único para Programas Sociais.
Entusiasta do Bolsa Família, Pedro Ferreira
Cavalcanti, da Fundação Getúlio Vargas, considera os programas de
transferência de renda eficientes e baratos e defende gastar mais com
eles do que com isenções fiscais. "O Bolsa Família não chega a 0,5% do
PIB, enquanto os incentivos tributários somam 4% do PIB", compara
Entusiasta do Bolsa Família, Pedro Ferreira
Cavalcanti, da Fundação Getúlio Vargas, considera os programas de
transferência de renda eficientes e baratos e defende gastar mais com
eles do que com isenções fiscais. "O Bolsa Família não chega a 0,5% do
PIB, enquanto os incentivos tributários somam 4% do PIB", compara
Ele explica que a compensação da desigualdade pode ocorrer pela transferência direta de impostos cobrados dos mais ricos para os mais pobres, via programas sociais, ou gastando mais com serviços utilizados pela classe desfavorecida. "O Brasil faz mal as duas coisas", avalia. Para ele, um exemplo de desigualdade promovido pelo Estado é manter regimes tributários diferentes para contribuintes com o mesmo potencial contributivo.
Recentemente, ao anunciar o Programa Verde e
Amarelo, para geração de empregos para jovens, o governo foi na direção
contrária da apontada pelos especialistas ao tributar em 7,5% quem
recebe o salário desemprego como fonte de receita para oferecer
desoneração ao empregador. "Não há evidência internacional de que esse
tipo de incentivo tem impacto duradouro no emprego, e tirar de
desempregado para transferir para o empregador, me parece um Robin Hood
às avessas. Deve haver outras fontes menos regressivas", diz
Cavalcanti.
"Temos outros exemplos, como a isenção
tributária da Zona Franca de Manaus até o absurdo de descontar do
Imposto de Renda o valor pago a empregados domésticos, subsidiando a
vida boa da classe média. Aumentar o valor do Bolsa Família tem um
impacto brutal na redução da pobreza. Se dobrasse o benefício, o impacto
sobre as pessoas e a economia seria muito grande com reflexo no
consumo. Afinal, não é isso que a equipe econômica espera ao liberar
saques do FGTS? Por que não aumentar o Bolsa Família?".
Marcelo Neri, economista da FGV-Social,
mostra esse impacto com números. "O Bolsa Família ajuda a girar as rodas
da economia e não custa tanto. Aumentar o programa causa impacto
econômico, porque os pobres consomem mais da renda do que outros setores
da sociedade, portanto o efeito multiplicador é maior. Para cada real
gasto com o Bolsa Família, o PIB cresce R$ 1,78. No caso do BPC, o
efeito é de cerca de R$ 1,20, já com a Previdência, é de R$ 0,53",
explica.
Sem reajuste, o valor unitário mensal pago
pelo Bolsa Família, de R$ 89,00, está abaixo da linha de extrema pobreza
estabelecida pelo Banco Mundial, de R$ 145 per capita por mês. "A linha
de extrema pobreza e de elegibilidade para o Bolsa Família tem que ser
compatível. Atualmente o programa não reflete os indicadores de extrema
pobreza, o que é prejudicial. É preciso reajustar os parâmetros",
afirma.
Do pacote com as propostas de combate à
desigualdade e à pobreza, anunciado por Maia na terça-feira, consta
incluir o Bolsa Família na Constituição e garantir reajustes acima da
inflação, além de uma modalidade específica do programa para crianças. O
grupo que elaborou a proposta promete apresentar uma PEC na próxima
semana com seis projetos de lei que incluem ainda políticas para água e
saneamento.
"Colocar o Bolsa Família na Constituição é uma medida extrema, mas o Brasil tem várias coisas na Carta que não beneficiam os mais pobres, então, é importante proteger o Bolsa Família. Talvez fosse bom que nada estivesse na Constituição e que houvesse uma política de Estado que mantivesse o valor do programa", diz Neri. Para Soares, o foco tem que ser a infância. "No Brasil, infância é igual a pobreza. Temos 53 milhões de crianças, 17 milhões não recebem nenhum benefício e, dessas, dois terços estão na metade de baixo da pirâmide e 50% são o público-alvo do Bolsa Família, que é um superprograma", opina.